A aliança demotucana tenta a todo custo afastar Fernando Henrique Cardoso da campanha eleitoral. O temor que a altíssima rejeição ao ex-presidente contamine o desempenho de José Serra é grande e, convenhamos, cheio de razão. No entanto, fica cada vez mais claro que eles não podem prescindir do talento de seu líder máximo não só na elaboração do programa a ser apresentado pelos tucanos mas também para o rascunho do discurso que o PSDB/DEM irá fazer nas eleições deste ano.
por José Genoino*
Prova disto, é a repercussão que teve seu artigo “Hora de União” publicado em vários jornais do país, turbinada pela divulgação de trechos da sua conversa com três professores-discípulos no caderno Alias do Estadão de domingo último.
O mérito do artigo é que nele, pela primeira vez, um líder da aliança que hoje aglutina a direita brasileira, afirma que o que estará em jogo nas eleições deste ano são dois projetos antagônicos. “Por trás das duas candidaturas polares há um embate maior” diz - com razão - FHC, desfazendo qualquer tentativa de Serra, seu ex-ministro e hoje candidato a presidente, se apresentar como o pós-Lula. FHC entra em jogo para, com sua experiência, revelar a artificialidade desta construção tática. O artigo de Fernando Henrique politiza o debate e comprova que não demandará muito esforço para que se explicite todo conteúdo anti-Lula da candidatura José Serra.
Entretanto, o debate político logo se transforma num monólogo acusatório e preconceituoso, onde a ficção toma o lugar do argumento. Talvez numa tentativa de repetir a estratégia do medo, FHC denuncia o governo Lula pela construção de um “capitalismo no qual governo e algumas grandes corporações, especialmente públicas, unem-se sob a tutela de uma burocracia permeada por interesses corporativos e partidários” e o PT de ser “um partido cujo programa recente se descola da tradição democrática brasileira, para dizer o mínimo”. Como um pregador, FHC alerta que “o ‘pensamento único’ esmagará os anseios dos que sustentam uma visão aberta da sociedade e se opõem ao capitalismo de Estado controlado por forças partidárias quase únicas infiltradas na burocracia do Estado”. E para aplacar qualquer dúvida sobre esta profecia, lembra que “a China está aí para demonstrar que isso é possível”.
É claro que FHC sabe que o que está dizendo não passa de acusações inaceitáveis. Ele sabe que o PT nasceu e se construiu na luta contra as concepções de “partido único”, contra a burocratização da política e a supremacia do estado.
A consolidação e a consagração do PT como um partido renovador, também para a esquerda mundial, deve-se a esta origem contestadora e antidogmática, em que a democracia é um valor supremo. Sabe também, que o êxito internacional do governo Lula não se deve apenas à qualidade da sua gestão econômica ou pelo alcance de seus programas sociais. Lula é reconhecido como um exemplo de estadista pelo seu apreço à democracia. Não há um só gesto ou intenção do nosso governo que possa sugerir um desprezo pelas regras democráticas. Muito pelo contrário, a recusa peremptória do terceiro mandato, o diálogo com a sociedade e com os movimentos sociais por meio dos Conselhos e Conferências Nacionais, a transversalidade das políticas públicas, fazem do governo Lula um exemplo do exercício democrático. Tratar os movimentos sociais como caso de polícia - como é hoje, com os professores, em São Paulo e como foi a greve dos petroleiros em 1995 - e mudar as regras do jogo para acomodar os interesses de quem governa - como foi com a instituição da reeleição no Brasil - ficaram no passado no plano federal.
Retroceder é o programa: o Brasil quebrou 3 vezes
Por isso, é de se acreditar que esta retórica do terror - mais sofisticada que aquela do “eu tenho medo” - sirva também para dissimular o vazio programático em que se encontra a direita mundial depois da crise que solapou o mundo neoliberal e que mantém a Europa encalacrada em dívidas colocando em risco, inclusive, a sobrevivência política da própria União Europeia.
Pois, se as candidaturas são “polares”, quais são os polos? Ele ataca ferozmente um, mas nem rabisca a defesa do outro! Se, para ele, o capitalismo do PT e do governo Lula é esta monstruosidade burocrática e autoritária, qual “capitalismo” é o deles?
O que Fernando Henrique quer esconder é o programa com que eles irão disputar as eleições. Ele não quer dizer que o que eles têm a propor é nada além do retrocesso. A volta das privatizações como solução para tudo e da vulnerabilidade financeira, da subserviência aos USA e ao FMI, da ameaça do desemprego, dos apagões. Isto é, ele não tem o que propor além do retorno das concepções que sustentaram os anos de seu governo, quando o Brasil faliu 3 vezes, pois não se sustentava perante as crises econômicas mundiais, e que são responsáveis pelo seu recorde de rejeição.
Talvez Fernando Henrique veja “a tutela de uma burocracia” no fato de ex-sindicalistas presidirem bancos e grandes empresas e ela ser ”permeada por interesses corporativos e partidários” signifique, para ele, defender os interesses destas empresas e do Brasil. Mas qual o problema? Por acaso, os executivos do mercado que presidiam estas mesmas instituições quando ele era presidente não defendiam interesses? Claro que sim! Só que outros: os do mercado. Aqueles mesmos interesses que levaram o sistema financeiro mundial à bancarrota em 2009, colocando milhares de trabalhadores na miséria e despertando sentimentos xenófobos como medida de autoproteção. Mas isto, evidentemente, ele não pode dizer! Até porque teria que admitir, por consequência, que o Brasil, por obra do nosso governo, foi um dos únicos países a sair ileso da mais devastadora crise econômica mundial desde a de 1929.
Na verdade, estas acusações compõem o recheio de um texto que revela outra dimensão do pensamento demotucano: o elitismo. FHC lembra o exemplo da eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral e dos acordos que a envolveram para pregar uma “aliança entre Minas e São Paulo” nas eleições deste ano. O que importa para Fernando Henrique, muito mais do que a densidade eleitoral destes estados, é o conteúdo conservador desta união que marcou a história do Brasil. Mas estas questões encontram-se mais desenvolvidas na conversa reproduzida no caderno Alias.
Elitismo e tradição aristocrática
Neste debate, promovido pelo jornal O Estado de S.Paulo, Fernando Henrique discorreu sobre anéis burocráticos, fundos sociais e fundos de pensão, sobre a esquerda dos anos 70, sobre a indulgência dos brasileiros. FHC mostra-se indignado com a “indecência” da política, confunde liberalismo econômico com liberalismo político, aponta riscos de cesarismo no presidencialismo ocidental e sustenta que um país só terá se desenvolvido quando “tiver telefonista ou empregada doméstica capazes de anotar um recado”. Exceto pela afirmação de que o Plano Real foi o verdadeiro responsável pela sua vitória em 1994 não há nada mais que possa sugerir que ele governou o Brasil por 8 anos. Reflete, inclusive, sobre a “incapacidade do setor estatal em garantir recursos e tecnologia” para garantir o desenvolvimento porque, afinal, “tudo foi mudando”.
Entretanto, o que mais chama a atenção aqui é a harmonia perfeita entre o seu pensamento elitista e a tradição autoritária da direita brasileira.
Enquanto troca graças e lisonjas com os debatedores, FHC esboça uma crítica virulenta aos mecanismos de expressão da população, mecanismos presentes na democracia representativa. Em uma visão tipicamente aristocrática, opõe-se à "democracia plebiscitária", vinculando o mecanismo de consulta direta à população ao governo de Hugo Chávez, de modo que democracia direta, via plebiscito, referendo e eleições, se confunda com o que ele chama de “consenso da massa”. Todos temos claro o perigo do autoritarismo das maiorias, mas a questão da democracia brasileira diz respeito a permitir que camadas secularmente excluídas participem do processo de deliberação. Os movimentos sociais, as donas de casa, os jovens, os marginalizados, com o bolsa família, com o Prouni, com os programas sociais e as políticas públicas do Governo, passaram a ter expressão e isso causa incômodo na velha ordem. Se a democracia se exprime pela máxima "todo poder emana do povo", o papel dos intelectuais não é o de contestar a participação popular, como faz Fernando Henrique, mas o de ajudar na construção de mecanismos democráticos para que a vontade popular se transforme em políticas públicas.
Por fim, gostaria de salientar que os termos em que Fernando Henrique coloca o debate eleitoral, independentemente do absurdo das acusações e da ausência de um programa para ele defender, é um salto qualitativo em relação à dissimulação programática e udenização do debate político promovido, até aqui, por outros líderes da oposição.
Não há como José Serra escapar de ser o anti-Lula porque não há possibilidades desta eleição não ser marcada pela confrontação entre estes polos. E se engana quem acha que nos convém apenas a comparação entre Lula e FHC. Esta talvez seja a mais direta, mas todas as outras também nos convêm. Vamos comparar qualquer governo petista, municipal ou estadual, com qualquer governo tucano ou do DEM. Vamos comparar Dilma com Serra. Vamos comparar a nossa ética com a deles. Vamos comparar a nossa história com a deles. Vamos comparar o Brasil que sonhamos com o Brasil que eles querem. Não há, como diz FHC, maneira de confundir. Porque será entre estes dois projetos “polares” de país, a disputa eleitoral de 2010.
José Genoino é deputado federal (PT-SP)
O mérito do artigo é que nele, pela primeira vez, um líder da aliança que hoje aglutina a direita brasileira, afirma que o que estará em jogo nas eleições deste ano são dois projetos antagônicos. “Por trás das duas candidaturas polares há um embate maior” diz - com razão - FHC, desfazendo qualquer tentativa de Serra, seu ex-ministro e hoje candidato a presidente, se apresentar como o pós-Lula. FHC entra em jogo para, com sua experiência, revelar a artificialidade desta construção tática. O artigo de Fernando Henrique politiza o debate e comprova que não demandará muito esforço para que se explicite todo conteúdo anti-Lula da candidatura José Serra.
Entretanto, o debate político logo se transforma num monólogo acusatório e preconceituoso, onde a ficção toma o lugar do argumento. Talvez numa tentativa de repetir a estratégia do medo, FHC denuncia o governo Lula pela construção de um “capitalismo no qual governo e algumas grandes corporações, especialmente públicas, unem-se sob a tutela de uma burocracia permeada por interesses corporativos e partidários” e o PT de ser “um partido cujo programa recente se descola da tradição democrática brasileira, para dizer o mínimo”. Como um pregador, FHC alerta que “o ‘pensamento único’ esmagará os anseios dos que sustentam uma visão aberta da sociedade e se opõem ao capitalismo de Estado controlado por forças partidárias quase únicas infiltradas na burocracia do Estado”. E para aplacar qualquer dúvida sobre esta profecia, lembra que “a China está aí para demonstrar que isso é possível”.
É claro que FHC sabe que o que está dizendo não passa de acusações inaceitáveis. Ele sabe que o PT nasceu e se construiu na luta contra as concepções de “partido único”, contra a burocratização da política e a supremacia do estado.
A consolidação e a consagração do PT como um partido renovador, também para a esquerda mundial, deve-se a esta origem contestadora e antidogmática, em que a democracia é um valor supremo. Sabe também, que o êxito internacional do governo Lula não se deve apenas à qualidade da sua gestão econômica ou pelo alcance de seus programas sociais. Lula é reconhecido como um exemplo de estadista pelo seu apreço à democracia. Não há um só gesto ou intenção do nosso governo que possa sugerir um desprezo pelas regras democráticas. Muito pelo contrário, a recusa peremptória do terceiro mandato, o diálogo com a sociedade e com os movimentos sociais por meio dos Conselhos e Conferências Nacionais, a transversalidade das políticas públicas, fazem do governo Lula um exemplo do exercício democrático. Tratar os movimentos sociais como caso de polícia - como é hoje, com os professores, em São Paulo e como foi a greve dos petroleiros em 1995 - e mudar as regras do jogo para acomodar os interesses de quem governa - como foi com a instituição da reeleição no Brasil - ficaram no passado no plano federal.
Retroceder é o programa: o Brasil quebrou 3 vezes
Por isso, é de se acreditar que esta retórica do terror - mais sofisticada que aquela do “eu tenho medo” - sirva também para dissimular o vazio programático em que se encontra a direita mundial depois da crise que solapou o mundo neoliberal e que mantém a Europa encalacrada em dívidas colocando em risco, inclusive, a sobrevivência política da própria União Europeia.
Pois, se as candidaturas são “polares”, quais são os polos? Ele ataca ferozmente um, mas nem rabisca a defesa do outro! Se, para ele, o capitalismo do PT e do governo Lula é esta monstruosidade burocrática e autoritária, qual “capitalismo” é o deles?
O que Fernando Henrique quer esconder é o programa com que eles irão disputar as eleições. Ele não quer dizer que o que eles têm a propor é nada além do retrocesso. A volta das privatizações como solução para tudo e da vulnerabilidade financeira, da subserviência aos USA e ao FMI, da ameaça do desemprego, dos apagões. Isto é, ele não tem o que propor além do retorno das concepções que sustentaram os anos de seu governo, quando o Brasil faliu 3 vezes, pois não se sustentava perante as crises econômicas mundiais, e que são responsáveis pelo seu recorde de rejeição.
Talvez Fernando Henrique veja “a tutela de uma burocracia” no fato de ex-sindicalistas presidirem bancos e grandes empresas e ela ser ”permeada por interesses corporativos e partidários” signifique, para ele, defender os interesses destas empresas e do Brasil. Mas qual o problema? Por acaso, os executivos do mercado que presidiam estas mesmas instituições quando ele era presidente não defendiam interesses? Claro que sim! Só que outros: os do mercado. Aqueles mesmos interesses que levaram o sistema financeiro mundial à bancarrota em 2009, colocando milhares de trabalhadores na miséria e despertando sentimentos xenófobos como medida de autoproteção. Mas isto, evidentemente, ele não pode dizer! Até porque teria que admitir, por consequência, que o Brasil, por obra do nosso governo, foi um dos únicos países a sair ileso da mais devastadora crise econômica mundial desde a de 1929.
Na verdade, estas acusações compõem o recheio de um texto que revela outra dimensão do pensamento demotucano: o elitismo. FHC lembra o exemplo da eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral e dos acordos que a envolveram para pregar uma “aliança entre Minas e São Paulo” nas eleições deste ano. O que importa para Fernando Henrique, muito mais do que a densidade eleitoral destes estados, é o conteúdo conservador desta união que marcou a história do Brasil. Mas estas questões encontram-se mais desenvolvidas na conversa reproduzida no caderno Alias.
Elitismo e tradição aristocrática
Neste debate, promovido pelo jornal O Estado de S.Paulo, Fernando Henrique discorreu sobre anéis burocráticos, fundos sociais e fundos de pensão, sobre a esquerda dos anos 70, sobre a indulgência dos brasileiros. FHC mostra-se indignado com a “indecência” da política, confunde liberalismo econômico com liberalismo político, aponta riscos de cesarismo no presidencialismo ocidental e sustenta que um país só terá se desenvolvido quando “tiver telefonista ou empregada doméstica capazes de anotar um recado”. Exceto pela afirmação de que o Plano Real foi o verdadeiro responsável pela sua vitória em 1994 não há nada mais que possa sugerir que ele governou o Brasil por 8 anos. Reflete, inclusive, sobre a “incapacidade do setor estatal em garantir recursos e tecnologia” para garantir o desenvolvimento porque, afinal, “tudo foi mudando”.
Entretanto, o que mais chama a atenção aqui é a harmonia perfeita entre o seu pensamento elitista e a tradição autoritária da direita brasileira.
Enquanto troca graças e lisonjas com os debatedores, FHC esboça uma crítica virulenta aos mecanismos de expressão da população, mecanismos presentes na democracia representativa. Em uma visão tipicamente aristocrática, opõe-se à "democracia plebiscitária", vinculando o mecanismo de consulta direta à população ao governo de Hugo Chávez, de modo que democracia direta, via plebiscito, referendo e eleições, se confunda com o que ele chama de “consenso da massa”. Todos temos claro o perigo do autoritarismo das maiorias, mas a questão da democracia brasileira diz respeito a permitir que camadas secularmente excluídas participem do processo de deliberação. Os movimentos sociais, as donas de casa, os jovens, os marginalizados, com o bolsa família, com o Prouni, com os programas sociais e as políticas públicas do Governo, passaram a ter expressão e isso causa incômodo na velha ordem. Se a democracia se exprime pela máxima "todo poder emana do povo", o papel dos intelectuais não é o de contestar a participação popular, como faz Fernando Henrique, mas o de ajudar na construção de mecanismos democráticos para que a vontade popular se transforme em políticas públicas.
Por fim, gostaria de salientar que os termos em que Fernando Henrique coloca o debate eleitoral, independentemente do absurdo das acusações e da ausência de um programa para ele defender, é um salto qualitativo em relação à dissimulação programática e udenização do debate político promovido, até aqui, por outros líderes da oposição.
Não há como José Serra escapar de ser o anti-Lula porque não há possibilidades desta eleição não ser marcada pela confrontação entre estes polos. E se engana quem acha que nos convém apenas a comparação entre Lula e FHC. Esta talvez seja a mais direta, mas todas as outras também nos convêm. Vamos comparar qualquer governo petista, municipal ou estadual, com qualquer governo tucano ou do DEM. Vamos comparar Dilma com Serra. Vamos comparar a nossa ética com a deles. Vamos comparar a nossa história com a deles. Vamos comparar o Brasil que sonhamos com o Brasil que eles querem. Não há, como diz FHC, maneira de confundir. Porque será entre estes dois projetos “polares” de país, a disputa eleitoral de 2010.
José Genoino é deputado federal (PT-SP)
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